Certame já havia sido suspenso pelo STF por ausência de igualdade no número de vagas para homens e mulheres. Advogado aponta outras irregularidades previstas no edital
A aprovação em um concurso público é o desejo de milhões de brasileiros, que estudam, muitas vezes, por anos a fio até conseguirem a tão almejada vaga. Quando o concurso é para uma carreira militar, o anseio vai muito além de um bom salário ou estabilidade profissional: para muitos, trata-se de um sonho acalentado desde a infância.
Alcançar a aprovação não é tarefa fácil. Mas ainda mais duro é passar nas provas e ser impedido de assumir a vaga por uma irregularidade ou falta de clareza do edital do concurso, ou por uma decisão equivocada da banca julgadora. E, lamentavelmente, muitos concursos no Brasil têm gerado essa frustração em milhares de candidatos, que acabam obrigados a procurar, na seara jurídica, a correção de injustiças.
É o que acontece, por exemplo, no concurso para preencher 4,4 mil vagas na Polícia Militar do Pará, que terá suas provas objetivas realizadas nos dias 10 e 17 de dezembro e que reuniu mais de sete mil inscritos. Na última semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu que o concurso fosse retomado após uma série de correções no edital, acabando com a divisão de oportunidades por gênero. Contudo, uma série de outras irregularidades e inconsistências podem levar o certame a ser questionado na Justiça.
Tatuagens
Um dos problemas mais gritantes no edital diz respeito à tatuagem. O edital elenca como causa incapacitante para aprovação que o candidato tenha tatuagens “de grandes dimensões”. Este impeditivo, contudo, já foi alvo de julgamento no STF e, ainda que esteja previsto na legislação paraense, pode ser alvo de ação judicial. “O legislador não pode escudar-se em uma pretensa discricionariedade para criar barreiras legais arbitrárias e desproporcionais para o acesso às funções públicas e a impossibilidade de escolha, pela Administração, daqueles que são os melhores”, entendeu o ministro Luiz Fux ao julgar Recurso Especial relacionado, justamente, ao uso de tatuagens por aprovado em concurso público.
“O STF entende que é direito fundamental do cidadão preservar sua imagem como reflexo de sua identidade e que é indevido ao Estado desestimular a inclusão de tatuagens no corpo. Como julgou o próprio ministro Fux, o Estado não pode agir como adversário da liberdade de expressão”, defende o advogado Israel Mattozo, especialista em Direito Administrativo. No acórdão, o STF decidiu que editais de concurso público não podem estabelecer restrição a pessoas com tatuagem, salvo situações excepcionais em razão de conteúdo que viole valores constitucionais. “Qualquer candidato que tiver sua aprovação negada por esse motivo certamente encontrará guarida na Justiça, ainda que nos tribunais superiores, como prevê o acórdão”, completa o advogado.
Índice de Massa Corporal
Peso e altura dos candidatos também podem instigar questionamentos judiciais. O edital prevê como critério de aprovação o exame antropométrico, que observará o candidato por meio de seu Índice de Massa Corpórea (IMC), calculado a partir da divisão do peso pelo quadrado da altura. Só serão aprovados candidatos com IMC entre 18 e 25 kg/m², enquanto candidatos com IMC entre 25 a 30 kg/m², à custa de hipertrofia muscular, serão avaliados individualmente.
Embora adotado constantemente, o uso do IMC em concursos públicos tem sido questionado pelos tribunais. Em 2018, o ministro Napoleão Nunes, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), categórico: “Pelo IMC, um fisiculturista pode facilmente ser classificado como obeso. Por outro lado, um triatleta ou maratonista pode ser enquadrado como desnutrido. Desta forma, o mais importante é como está a saúde da pessoa em geral, e não o seu IMC, que nem sempre corresponde à realidade em relação às taxas de exames”.
Para Mattozo, as empresas responsáveis pelos concursos deveriam seguir critérios mais técnicos na avaliação dos candidatos. “Apesar do IMC apresentar razoável acurácia, é preciso cautela, já que o índice não é capaz de mensurar diretamente a gordura corporal. Há métodos mais eficazes, considerados padrão-ouro pela ciência, como a pesagem hidrostática. Isso pode afastar um candidato perfeitamente apto para a função já dos testes físicos, o que é um absurdo”, critica o especialista.
Gestantes e testes de aptidão física
Outra falha grave diz respeito às gestantes. O edital prevê que, em caso de gravidez, o exame de aptidão física ocorrerá após no mínimo 30 e no máximo 90 dias do término da gravidez. A norma, prevista na legislação paraense, esbarra não somente na legislação federal, mas também no entendimento dos tribunais. No Brasil, a licença-maternidade está fixada pela CLT em 120 dias, prazo mínimo, portanto, que deveria ter sido observado no edital. O STF, por sua vez, em julgamento de Recurso Especial, negou o pedido feito pelo Estado do Paraná e manteve sentença do TJPR que concedeu a uma candidata o direito de fazer os testes 180 dias após o parto.
No Congresso Nacional, inclusive, tramita o Projeto de Lei 2429/2019, que regula a realização de testes de aptidão física e a apresentação de exames médicos em concurso público por candidata gestante ou lactante. O PL foi alterado em sua proposição inicial após exame da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, com a inclusão de parecer da então deputada federal Major Fabiana (PSL-RJ), que fixou prazo de no mínimo 180 e no máximo 360 dias para realização dos testes, contados a partir da alta hospitalar pós-parto da candidata e/ou do filho recém-nascido, o que ocorrer por último.
“O prazo imposto pelo edital é inconcebível. O direito de a mãe acompanhar os primeiros dias de seu filho é inviolável, isso sem mencionar o direito à recuperação física e emocional após o parto. A maternidade tem especial proteção na Constituição”, comenta Mattozo. “O edital não pode criar barreiras arbitrárias para o acesso às funções públicas, mas sim respeitar preceitos constitucionais e legais”, acentua o advogado.
Com atuação em todo o território nacional especialmente na defesa de candidatos injustiçados em concursos públicos, Mattozo faz um alerta: “O Estado não tem o direito de expor milhares de brasileiros que almejam uma vaga em um concurso público a editais com tantas falhas. A cada dia, aumenta o número de ações judiciais propostas para corrigir injustiças desse tipo e, pelo visto, não será diferente no concurso da PM paraense. Os editais precisam estar em consonância com o momento em que vivemos, o que se reflete nas decisões dos tribunais. Felizmente, os candidatos que se considerarem prejudicados sempre poderão contar com a Justiça para corrigirem esses erros”.