Aluna convocada para procedimento de heteroidentificação tardio obtém direito de concluir sua graduação

Justiça do Ceará entendeu ser injusta aferição da autodeclaração racial cinco anos após matrícula e sem que houvesse previsão do processo no edital

 

Estudante da Universidade Regional do Cariri (Urca), localizada na cidade do Crato, no interior do Ceará, obteve na Justiça o direito de concluir sua graduação sem precisar passar por procedimento de aferição de sua autodeclaração racial, apresentada no ato de sua matrícula na instituição, em 2019. A decisão foi proferida pelo juiz José Batista de Andrade, da 1º Vara Cível do Crato (CE), no dia 10 de setembro.

 

No edital do processo seletivo realizado pela aluna, a Urca não estipulou a obrigatoriedade de procedimento de heteroidentificação para determinar quais candidatos estavam aptos a ingressar na instituição dentro das vagas reservadas às cotas raciais. O único requisito estipulado era a autodeclaração, que foi devidamente preenchida pela estudante.

 

Entretanto, cinco anos após sua entrada na instituição, atualmente no último período e com 95% da carga horária de seu curso cumprida, a estudante foi convocada para procedimento de heteroidentificação tardio, que invalidou sua autodeclaração e determinou que sua matrícula fosse suspensa. O que foi considerado irregular pela Justiça cearense por não existir, no edital do processo seletivo, qualquer previsão sobre a aferição da leitura racial que a estudante faz de si própria.

 

“A convocação da promovente para realizar matrícula no processo seletivo se deu pelo Edital nº 08/2018-GR, que exigiu a apresentação da autodeclaração étnica (negro, pardo, indígenas ou pertencentes a comunidades quilombolas), sem menção a qualquer outro critério de avaliação a que tivesse que se submeter visando avaliar a fidedignidade da declaração”.

 

O lapso temporal entre a inscrição da candidata e a convocação para procedimento de heteroidentificação foi levando em consideração pelo magistrado. “Não se afasta o dever da Universidade em examinar as declarações de etnia racial apresentadas pelos candidatos. O problema está na realização de tal procedimento somente depois de cinco anos de iniciado o curso, com decisão retroativa à época de ingresso da aluna, e, ainda, sem qualquer previsão no Edital”.

 

Injustiça reparada

 

A motivação da Urca em convocar a aluna para o procedimento de heteroidentificação partiu de uma recomendação da Promotoria cearense. O que, para o juiz, não torna o ato válido. “Não é razoável impedir que a aluna prossiga no curso por razões que não deu causa, ou seja, pela tardia aferição à que foi submetida, mesmo que tal procedimento tenha como origem em recomendação do Ministério Público Estadual”.

 

Na decisão, o magistrado considerou ser “completamente injusto que, após mais de cinco anos, a requerente venha a ser afastada do referido curso, depois de ter ingressado na dita Universidade de acordo com as regras instituídas pela própria instituição de ensino superior” e suspendeu o ato que determinou a submissão da estudante ao exame de heteroidentificação, bem como o resultado do mesmo.

 

“A decisão da Urca em convocar vários estudantes, alguns deles que já até haviam concluído seus cursos, para procedimentos de heteroidentificação é completamente descabida”, avaliou o advogado Israel Mattozo, sócio fundador do Escritório de Advocacia Mattozo & Freitas, responsável pela ação que culminou na suspensão do ato administrativo da instituição. “Não havia nenhuma previsão de exame de heteroidentificação no edital. Exigir que ele seja realizado tantos anos depois é uma flagrante violação aos princípios da legalidade da segurança jurídica”, completou.

 

Especializado em Direito Administrativo e Direito Constitucional, o jurista lembrou que a convocação intempestiva para a verificação da autodeclaração também feriu o princípio da vinculação ao edital, “um dos pilares fundamentais que rege a conduta administrativa”, destacou. “O ordenamento jurídico brasileiro não prevê a obrigatoriedade da heteroidentificação para validar as cotas raciais no ensino superior público. Portanto, não houve ilegalidade no edital. Por isso, é preciso respeitá-lo”.

 

Mattozo fez uma analogia com o futebol para analisar o caso da estudante. “A Universidade quis alterar as regras do jogo com a bola rolando. O pior é que não foi sequer no começo da partida, mas já no segundo tempo, perto do apito final. Felizmente, o Poder Judiciário reparou um erro que colocaria em xeque não apenas a reputação da instituição, mas toda a dedicação e empenho de uma estudante ao longo de cinco anos de estudo”, encerrou.

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